JORNALISMO ON LINE
Texto extraído de: MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
Capítulo 3
A velocidade como fetiche
Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve.
Luiz Fernando Veríssimo
0 conceito de fetichismo da mercadoria é suficientemente conhecido: Marx o definiu como o processo através do qual os bens produzidos pelo homem, uma vez postos no mercado, parecem existir por si, como se ganhassem vida própria, escondendo a relação social que lhes deu origem211. Na base desse processo está a reificação operada pelo capital, e que se condensa na definição do valor de troca da mercadoria, no qual a relação entre o trabalho necessário para a produção de um bem e esse mesmo bem se torna qualidade objetiva do produto. Assim, uma relação social estabelecida entre seres humanos aparece como uma fantasmagórica relação entre coisas. Daí o fetiche, que leva a perceber como naturais, objetificadas, as relações sociais.
Definida como mercadoria, tanto por teóricos como Habermas quanto por grandes empresas jornalísticas como a Folha de S. Paulo, a notícia não fugiria à regra: esconde o processo pelo qual foi produzida e vende mais do que a informação ali apresentada. Vende também, e principalmente, a ideologia da velocidade.
Este capítulo reúne as duas pontas do lema-síntese do jornalismo ("a verdade em primeira mão"), até aqui analisado em cada uma de suas partes. A junção pretende provocar o choque dos dois termos desse postulado e comprovar a hipótese principal deste trabalho - a de que a velocidade é consumida como fetiche, pois "chegar na frente" torna-se mais importante do que "dizer a verdade": a estrutura industrial da empresa jornalística está montada para atender a essa lógica.
Assim, em primeiro lugar analisaremos o processo de fetichização operado no jornalismo, para demonstrar como esse conceito se aplica ao primado da velocidade no mundo contemporâneo, e como a imprensa é parte integrante e ativa desse processo. A seguir, veremos como o jornalismo em tempo real se justifica a partir das necessidades do capital financeiro mas estende a sua lógica ao trabalho jornalístico em geral, reiterando o fetiche. A análise abrangerá o modelo segundo o qual o público tem agora a possibilidade de montar seu próprio jornal, a partir das informações que ele mesmo seleciona. Vamos contextualizar esse modelo do "tempo real" verificando como ele "vende" a idéia de liberdade de escolha encobrindo a fabricação da opinião a partir da suposta valorização do público como consumidor, a quem o jornal apenas "serve", excluindo-se aí o papel político do jornalista como mediador, que dá ao público "aquilo que ele não sabe que precisa”212
Notícia e fetiche
A definição da notícia como mercadoria permite a aplicação do conceito marxista de fetiche em dois sentidos principais. Primeiro, no aspecto mais visível, relacionado à idéia de que "os fatos falam por si", tais como aparecem no jornal, ocultando o processo de produção de sentido. Depois, na relação que a imprensa estabelece com o público, conferindo à notícia aquilo que Marcondes Filho chamou de aparência de valor de uso:
0 que caracteriza o jornalismo não é somente vender fatos e acontecimentos (que seriam puramente o valor de uso da informação), mas, ao transformá-los em mercadoria, explorar e vender sua aparência, o seu impacto, o caráter explosivo associado ao fato. Isso constrói a sua "aparência de valor de uso”213.
Marcondes Filho parte, assim, dos conceitos de valor de uso e valor de troca, clássicos no marxismo, observando que, com razão, Marx privilegiou em sua teoria o valor de troca, em torno do qual se manifestavam as determinações econômicas fundamentais, representativas do modo de organização da sociedade burguesa. Com isso, porém, foi relegada a segundo plano a análise da importância e do sentido do valor de uso das criações e produções humanas transformadas em mercadoria. Marcondes Filho recorre a um famoso estudo de Baudrillard para mostrar a lacuna que se cria em relação ao conceito de valor de uso, tratado como se a relação entre a necessidade própria do homem e a função própria do objeto fosse concreta, objetiva, natural, o que, afinal, contribuiria para a mitificação em torno do "verdadeiro" valor de uso de um produto214. A seguir, argumenta que, "da perspectiva do valor de uso, contudo, existe também toda uma mística na utilização da mercadoria, e é exatamente disso que se aproveita toda a indústria moderna de publicidade". Pois, como se sabe, jamais se consome o produto apenas, mas todos os valores extras que lhe são atribuídos: status, bom gosto, poder, beleza, juventude, etc. É no mesmo sentido que também se consome o jornal:
A nova apresentação periódica da aparência do valor de uso, a agilidade formal, o colorido, a diversidade ("com paginação moderna", mais fatos, papel espelhado, novas cores, novos tipos gráficos, suplementos coloridos, "comunicados de todo o mundo" e "informes exclusivos", mais páginas, "o mais novo", "o mais sensacional", etc.) servem somente ao objetivo de realizar o valor de troca em forma de dinheiro sem melhorar o valor de uso para o leitor215.
Embora reconheça contradições no processo de produção de notícias - próprias, aliás, do processo de produção de bens simbólicos -, de modo que "o jornal, a revista podem deixar passar os conflitos internos de sua produção" (grifo do autor), Marcondes Filho não parece dar suficiente atenção a esse aspecto. Ao contrário, preocupa-se com o caráter fragmentário e desconexo da apresentação cotidiana de notícias, que teria a função ideológica de domesticar conflitos e alienar consciências, a pretexto de informar. No limite, o valor de uso
do jornal, como meio de informação numa perspectiva de transformação social, seria igual a zero.
Certamente a questão não é simples assim: não se trata de opor esclarecimento (informação) a alienação, mesmo porque é impossível desconsiderar o campo de ambiguidades no qual o discurso se realiza. Além do mais, essa análise parte do pressuposto do público como "massa", manipulada pela indústria cultural, no sentido empregado pela Escola de Frankfurt, e portanto não inclui o público como parte integrante do processo de produção de sentido. Tampouco é de espantar que, ao associar imprensa e capitalismo, Marcondes Filho vincule (e restrinja) a própria prática do jornalismo às rotinas da grande empresa, de modo que o jornalismo não faria sentido numa sociedade não-capitalista.
Adelmo Genro Filho realizou uma boa crítica desses pressupostos recorrendo à perspectiva dialética que está no cerne da teoria crítica marxista, segundo a qual "o velho traz em si o germe do novo" e, portanto, as necessidades criadas pelo sistema capitalista provocam contradições que permitem formular hipóteses de transformação. No caso do jornalismo, Genro Filho aponta o papel da imprensa diária na satisfação de necessidades reais de informação e alerta para o risco (e o mecanicismo) das teorias conspiratórias que em tudo vêem a manipulação ideológica da classe dominante.
É claro que todas essas reflexões se dão num contexto datado, no qual se vislumbrava, embora a duras penas, a perspectiva da via socialista como superação do capitalismo. A queda do muro de Berlim, o fim da URSS, a guerra nos Bálcãs e tantos outros acontecimentos da virada dos anos 80 para os 90 ajudaram a sedimentar o “pensamento único" neoliberal de tal forma que esse tipo de elaboração teórica parece anacrônico e sem sentido. Certamente não é, porque toca em questões centrais do modo de produção e da fábricação de bens simbólicos postos no mercado, embora deva-se ressalvar que as alternativas propostas precisam ser reconsideradas em função das transformações pelas quais o mundo passou na última década.
É por isso que faz sentido retomar a crítica marxista e, com ela, o conceito de fetiche. No percurso trilhado até aqui, salientamos que os questionamentos ao "beco sem saída" para o qual aponta a análise de Marcondes Filho não devem desmerecer a precisão de seus argumentos sobre o processo de fetichização na informação jornalística.
A propósito, Genro Filho objeta que, "quando se pretende afirmar que o jornalismo, através da 'fragmentação noticiosa', produz necessariamente informações reificadas e que isso corresponde ao fetichismo geral da mercadoria, deve-se antes perguntar se realmente a fragmentação formal corresponde a um conteúdo reificado das notícias”216.
Pois, diz ele, a idéia de fragmentação e reifícação diz respeito ao conteúdo e não apenas à forma. Inexplicavelmente, o autor parece esquecer por um momento a concepção dialética na qual baseia toda a sua formulação teórica, pois forma e conteúdo não existem separadamente. Além disso, parece conferir uma excessiva ênfase nas potencialidades das novas técnicas do jornalismo e na força esclarecedora dos fatos que são dados à luz.
A idéia de fluxo, de um movimento no qual os atores aparecem diretamente em ação, muitas vezes instantaneamente, as infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas que saturam o meio social, tudo isso oferece enormes possibilidades para a negação da reificação ao invés de reforçá-la inexoravelmente217.
Certamente as "infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas" permitem pensar em igualmente infinitas interpretações dos fatos noticiados, mas valorizar por si a irrupção dos atores sociais na cena jornalística é esquecer todo o processo de construção da notícia; particularmente, valorizar a instantaneidade colabora para reforçar um outro fetiche, exatamente o que criticamos aqui: o fetiche da velocidade.
A velocidade auto-valorizada
Como disse Mattelart, a comunicação serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. E é fundamentalmente a guerra o tema de estudo de Paul Virilio: a guerra e sua lógica, suas relações com a política e a velocidade. 0 tom de seus textos é claramente apocalíptico, o que justifica críticas como a de Antonio Negri, condenando, embora sem citar nomes, o que chama de "concepção terrorista da mídia":
Nunca, como agora, a relação mídia-espectador foi tão satanizada, e isso só faz piorar. Não só isso, pretendeu-se dar à mensagem da mídia a imagem de uma rajada de metralhadora que se abate sobre o espectador - alvo miserável de um poder onipresente - e o aniquila. Esse moralismo obtuso e deprimente ganhou ares de ritual, mais particularmente para uma esquerda já agora incapaz de análises e propostas e que continua a se refugiar em lamentações inúteis. Mostram-nos uma vida cotidiana dominada pelo monstro da mídia como um cenário povoado de fantasmas, de zumbis prisioneiros de um destino de passividade, frustrações e impotências218.
A consequência seria o imobilismo diante de uma situação sem saída, "uma visão reificada e intransitiva da vida política que se traduz por: não se pode fazer nada! Impossível escapar a essa escravidão!" , confirmando-se assim a sacralidade do poder "nessa novíssima modernidade”. 219
.
A justeza da crítica não deve, porém, retirar a importância de aspectos essenciais dos estudos em questão, mesmo porque é a partir deles que será possível contrastar o triunfalismo dos postulados do "pensamento único". Assim, é fundamental ressaltar a abordagem que Virilio faz sobre o tempo real, encarado como um componente essencial do complexo militar-informacional contemporâneo que impõe à sociedade uma noção de informação como algo puramente estatístico. 0 autor apresenta a questão a partir de considerações sobre o campo da cibernética e o conceito de informação daí decorrente:
Durante a Segunda Guerra Mundial, os engenheiros da Bell Corporation descobrem uma grandeza física observável cuja utilização assegura uma melhor transmissão. Esta é batizada de informação. Logo, Norbert Wiener, o pai da cibernética, a definiu pelo que ela não é: "A informação não é nem a massa, nem a energia, a informação é a informação"220.
0 problema é a conclusão que Virilio extrai daí: segundo ele, uma vez que o advento limitado da revolução dos transportes dá lugar ao advento generalizado da revolução das transmissões instantâneas, a teoria da informação (a informática) suplantaria a física. Assim,
a fusão está feita e a confusão é total. A informação é o único "relevo" da realidade, seu único "volume". Na era da numerização da imagem e do som, deve-se até mesmo dizer sua "alta definição". Com a energia em potência e a energia no ato, dispomos agora de uma terceira forma energética: a energia em informação. Em seguida às três fases do deslocamento - a partida, a viagem, a chegada - e depois do declínio da "viagem", é iminente a perda da "partida". A partir daí tudo chega sem que seja necessário partir, mas o que “chega" não é mais a etapa ou o objetivo da viagem, é somente informação. ( ... ) 0 reino da chegada generalizada se confunde então com a generalização da informação em tempo real, tudo se precipita sobre o homem, um homem-alvo atacado de todos os lados e cuja salvação só pode estar na ilusão, a fuga diante das realidades do momento, perda do livre arbítrio cuja ocorrência Pascal evocava quando escreveu: "Nossos sentidos não percebem nada de extremo. Barulho demais nos ensurdece. Luz demais nos ofusca. As quantidades extremas nos são inimigas. Não sentimos mais, sofremos”221.
Estaríamos então realmente no beco sem saída a que se referiu Negri. Mas pode-se ver essa abordagem por outro lado e perceber aí a conformação do fetiche, ponto de partida para um questionamento mais profundo do atual estado de coisas: a informação não quer dizer nada, existe por si. Virilio praticamente explicita essa idéia páginas adiante, associando-a exatamente à atividade jornalística:
0 ciberespaço, ou, mais exatamente, o "espaço-tempo cibernético'', surgirá dessa constatação, cara aos homens de imprensa: a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor, a velocidade é a própria informação!222
Não por outro motivo o autor criou o neologismo "dromologia" (variante do grego dromos, relativo à idéia de corrida, curso, marcha) para apontar a lógica das sociedades pós-modernas. Laymert Garcia dos Santos diz que essa lógica "toma como referência absoluta, como equivalente geral, não mais a riqueza, mas a velocidade", que "vai se afirmando como idéia pura e sem conteúdo, como puro valor, que ameaça ultrapassar até mesmo o valor do capital”223. A metáfora permite reafirmar a idéia de fetiche - pois, afinal, esta é a própria lógica do capital nos tempos atuais, embora apareça descolada dele: é através da velocidade que o capital se realiza no "espaço de fluxos" do mercado financeiro global.
Generalizar as observações sobre informação e velocidade para a vida social só é possível num contexto em que se pretende identificar o cérebro humano com os componentes do computador, ou, como diz John von Neumann, "compreender o sistema nervoso do ponto de vista de um matemático".
Esse ponto de vista privilegia de forma inabitual os aspectos lógico e estatístico que serão destacados ao lado das técnicas matemáticas gerais. Além do mais, a lógica e as estatísticas serão consideradas principalmente (mas não exclusivamente) como instrumentos de base da teoria da informação e o essencial desta teoria será desenvolvido em torno da massa de experiências adquirida na construção, avaliação e codificação de autômatos lógicos e matemáticas complexas224.
Nesse contexto, tudo se transforma em informação, inclusive o corpo humano, que passa a ser visto como informação genética. A contrapartida ao acúmulo de próteses e à sedentarização progressiva nas grandes metrópoles é o apelo a uma também progressiva excitação, "não somente através das práticas esportivas abertamente desnaturalizadas, mas também no caso de atividades cotidianas em que a emancipação corporal devida às técnicas de teleação em tempo real liquida as necessidades tanto de vigor físico quanto de esforço muscular225. Lembrando Marinetti e seu projeto futurista que, já na primeira década do século XX, pretendia inaugurar "o reino do homem com as raizes cortadas", identificado com o motor, e recorrendo a conceitos da biologia segundo os quais "a excitabilidade é a propriedade fundamental dos tecidos vivos", Virílio faz um paralelo com a vida social e afirma:
Se ser é estar excitado, ser vivo é ser velocidade, uma velocidade metabólica que a tecnologia se dedica a aumentar e aperfeiçoar, como soube fazer para as espécies animais226.
Ao tratar da informação jornalística no contexto de aceleração do tempo, Virilio reitera a idéia de fetiche, pois, mais do que a notícia, consome-se velocidade.
A velha fórmula segundo a qual a informação é praticamente a única mercadoria que não vale mais nada ao fim de vinte e quatro horas merece portanto reflexão. No século XIX e no início do XX, em pleno auge da imprensa, trata-se ( ... ) menos de "produzir informação" do que de antecipá-la, de alcançá-la em movimento, para finalmente vendê-la antes que seja literalmente ultrapassada. Os assinantes passam a comprar menos notícias cotidianas do que adquirir instantaneidade, ubiquidade ou, em outras palavras, compram sua participação na contemporaneidade universal, no movimento da futura cidade planetária227.
Nesse processo de aceleração, "o imaginário substituía a realidade dos fatos, os jornalistas e publicitários se entregavam ao perigoso jogo dos prognósticos":
Em 1927, a imprensa francesa apostou desta forma no sucesso da travessia do Atlântico Norte de Leste a Oeste por Nungesser e Coli a bordo do L'Oiseau Blanc. Unânime, ela relatará com riqueza de detalhes a chegada triunfal a Nova Iorque, a alegria dos vencedores e a multidão em delírio, os discursos históricos proferidos na ocasião... No exato momento em que o anúncio da expedição fazia subir a venda dos jornais, os heróis do dia já haviam desaparecido de corpo e alma ao largo da costa americana à qual eles jamais chegaram. Entretanto, os redatores e jornalistas souberam se livrar desse equívoco acusando o governo e os ministérios envolvidos no caso de lhes terem induzido a erro ao divulgar informações falsas. O notável é que o público questionou os ministros da República, mas não usou do mesmo rigor com a imprensa228.
Precipitações como essa são ainda mais antigas, e algumas delas entraram para o anedotário do jornalismo: por exemplo, a reação de Mark Twain ao ler seu próprio obituário no jornal, em 2 de junho de 1897. Com a ironia que o caracterizava, ele reclamou à Associated Press: "A notícia sobre a minha morte foi muito exagerada".
Mas o "perigoso jogo dos prognósticos" a que se refere Virilio tem alcance mais amplo:
Há muito tempo os assinantes efetivamente fizeram o amálgama entre a ilusão da informação à distância, a vitualidade do romance-folhetim e a excitação dos jogos de azar organizados pelos grandes jornais, rifas, loterias, concursos... sem contar com os índices da bolsa e os grandes acontecimentos dromológicos, ralis, corridas e recordes eqüestres, pedestres, automobilísticos, aéreos, marítimos, ciclistas229.
A imposição do "tempo real"
Essas considerações indicam que as contradições entre, de um lado, uma estrutura que favorece a precipitação e a aposta em "prognósticos" como valor de atualidade e, de outro, o respeito a regras que exigem um distanciamento (e, portanto, alguma desaceleração) para a apuração rigorosa da notícia, é tão antiga quanto a própria constituição da imprensa como atividade industrial. Agora, na era do "tempo real", essas contradições tendem a se agravar, e a se "resolver" pela eliminação de um dos termos do problema - a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas -, pois "qualquer explicação serve" para sustentar a notícia transmitida instantaneamente.
O tempo do mercado financeiro dita a regra que pode ser sintetizada na expressão rush or perish - a rapidez é a condição da sobrevivência, sem que, entretanto, se saiba em que sentido é preciso ser rápido. O abalo provocado pelo jogo especulativo de um operador do banco Barings, em 95, e a chamada "crise asiática" de 97, são dois exemplos recentes das consequências a que pode chegar um sistema em que num segundo fortunas são feitas ou perdidas.
A "nova utopia tecnológica", no dizer de Ignacio Ramonet, é a internet e sua possibilidade de interligar o mundo com informações em tempo real e fluxo contínuo, exatamente como opera o mercado financeiro. Como a maioria dos grandes jornais, no mundo todo, já pertence a megagrupos de comunicação, não há como analisar a prática do jornalismo fora desse contexto230.
No tempo do jornalismo on line, o ritmo de trabalho se acelera.
Rio de Janeiro, inverno de 1997.
Os nove metros quadrados da saleta do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) eram suficientes para abrigar uma mesa retangular e oito cadeiras de madeira compensada - mobiliário espartano, mais corretamente classificado como "velho" do que “antigo". Nas paredes brancas, nenhum quadro ou prateleira, apenas trilhas de tinta descascada, que convergiam para uma esquadria de alumínio, por onde uma réstia de luz atenuava a sóbria padronização do ambiente, comum a boa parcela das repartições públicas.
Foi neste cenário pouco atraente que presenciei pela primeira vez o espetáculo do tempo real. Em volta da mesa, meia dúzia de jornalistas acompanhava, atentamente, o que um técnico já experiente em conceder entrevistas coletivas dizia a respeito da última safra agrícola e do indicador mais recente, também saído do forno, elaborado pelo IBGE sobre o desempenho da indústria e do comércio. Sem demorar-se, revelou logo aquilo que sabia aguardado sedentamente pelos repórteres de economia que o ouviam, caneta e bloco em posição de largada: os números.
Informados os devidos percentuais e feitas as primeiras análises e projeções (o que levou não mais do que dez minutos), repentinamente, metade dos jornalistas presentes se levantou. Num maneio ligeiro e sincronizado, cada repórter sacou seu telefone celular e começou a dedilhar freneticamente as teclas do aparelhinho, nunca tão indispensável quanto naquele momento.
A repórter da Agência Globo foi a primeira a conseguir falar com a redação, para desespero dos jornalistas de outras agências de notícias em tempo real, que, naquele momento decisivo da disputa pelo troféu da agilidade, deparavam-se com problemas aparentemente banais. Ali, ganhavam proporções gigantescas um telefone ocupado e uma bateria fraca - detalhes que poderiam fazer deles perdedores, profissionais fracassados em sua missão de levar para o assinante dos respectivos serviços eletrônicos a informação "em primeira mão", mesmo que por uma diferença de segundos sobre a agência concorrente. No auge do desespero, buscavam alguma alternativa, como pedir socorro a uma calma e serena assessora de imprensa que, alheia às angústias gerais, acompanhava-os lentamente ao telefone fixo mais próximo. E, com sorte, o aparelho não estaria sendo usado pela secretária, ocupada pela tarefa não menos inglória de, mesmo à distância, arbitrar a disputa dos filhos pelo controle-remoto da TV de casa. Vencida esta etapa, cumpria-se a missão dos repórteres, que poderiam então se deslocar para uma nova entrevista coletiva e, no caminho, passar do carro mais um flash com informaçoes remanescentes. Para mim, àquela altura, começava a ficar claro que a produção de um repórter de agência é avaliada conforme o número de flashes ou "notas" que ele é capaz de passar para a redação, o que se usa chamar, no jargão do meio eletrônico, de capacidade de "alimentar o sistema”231.
0 depoimento não considera que, de alguma forma, os jornalistas da "era industrial" sempre trabalharam assim: perdem-se a conta das cenas em que o cinema reproduziu o ambiente clássico das salas de imprensa dos anos 20 e 30, os repórteres reunidos jogando cartas e fumando displicentemente até que uma informação nova os sacudia e todos corriam aos telefones para passá-la aos jornais, cada qual com uma versão mais sensacional que o concorrente. A informação não chegava "em tempo real" para o leitor, mas garantia as edições extras da época.
Evidentemente, há diferenças de ritmo, conforme o tipo de veículo para o qual se trabalha. Mas o importante será perceber como a lógica do "tempo real" afeta a prática do jornalismo como um todo, radicalizando a “corrida contra o tempo" que sempre marcou a profissão. Mais ainda: que as exigências do mercado financeiro, e de quem nele atua, passam a ser o relógio do noticiário em geral. A chave para a defesa de nossa hipótese principal - a velocidade como fetiche - encontra-se nas palavras finais do trecho reproduzido acima: trabalhar cada vez mais rápido para "alimentar o sistema". Pois, bem antes do início da era do "tempo real", um experiente editor carioca definia cinicamente: "jornalismo é pintar de preto papel branco". O que é mais ou menos a mesma coisa que reiterar uma das máximas incluídas no folclore da profissão: notícia é o que se publica entre anúncios.
A informação instantânea
Comecemos pelo fim: a "engrenagem do tempo real" segundo a qual funcionam os serviços noticiosos on line, vista por Mariana Mainenti Gomes, então estagiando como repórter do Investnews, da Gazeta Mercantil. A descrição do ambiente de trabalho dá a base sobre a qual se desenvolvem as rotinas de produção:
Quem conhece uma redação de jornal, revista ou TV e passa por uma agência de notícias nos horários de maior movimento - entre dez da manhã e cinco da tarde - é capaz de apostar que ali não se encontram jornalistas mas, sim, operadores de teleimarketing ou de algum moderno call center (unidade telefônica de atendimento aos clientes de determinada empresa). Com fones no ouvido - utilizados para receber as notas passadas pelos colegas que estão em coletivas na rua - e com aparatos de proteção nas mãos, para proteger-se da tendinite (inflamação dos tendões muito comum àqueles que fazem esforço repetitivo, como o uso intensivo do mouse) esses jornalistas encarnam o estereótipo do operário-padrão da era pós-industrial. O clima geral é de extrema concentração. São raras as conversas "paralelas", mesmo envolvendo discussões a respeito de matérias. As reuniões de pauta, quase inexistentes. Para todos que ali estão, qualquer uma dessas práticas pode levá-los a adiar um ponto final na notícia, o que não combina com a essência atribuída ao veículo: a rapidez. ( ... ) Esses jornalistas têm de estar empenhados em tornar 100% de seu expediente na agência produtivos, pois sobre eles recai de modo subliminar mas recorrente uma espécie de índice de produtividade. Do mesmo modo que um operador de telemarketing é avaliado pelo número de vendas realizadas e o atendente de call center pelo de atendimentos, a produção de um jornalista on line é medida pelo número de notas que ele é capaz de lançar no sistema - algo fácil de ser checado pelos chefes ou dirigentes da empresa: basta digitar o nome do avaliado no espaço reservado para pesquisa de texto por palavra-chave e, em seguida, lá estarão listadas todas as notícias produzidas por ele.
De tais rotinas resulta um material noticioso bem específico: para cumprir a meta de cinco notas por saída - e assim compensar com volume de notícias a perda de tempo no trânsito - o repórter on line aprende a desmembrar uma mesma informação.
[Isso] torna mais ágil também todo o processo de produção da agência, pela filosofia da divisão do trabalho: o repórter envia a primeira nota por celular e algum outro repórter que está na redação, simultaneamente, a digita na tela "interna". Enquanto o repórter está passando a segunda nota, a primeira já está sendo lida e liberada pelo editor para a tela do usuário do serviço. Quando o editor terminar de ler a primeira nota, provavelmente, a segunda já terá sido passada pelo repórter, estando pendente no sistema para a sua liberação. E assim sucessivamente.
É um ritmo comparável ao das antigas agências que, pelo telex, enviavam notas "do mundo todo" aos jornais, com a considerável diferença de que, então, o jornal reuniria aquele material para depois processar a informação, e agora a relação é diretamente com o público.
Esse automatismo traz conseqüências importantes para a qualidade da informação veiculada: A orientação para o repórter é nunca ficar com informação "parada": ao receber uma notícia, deve automaticamente repassá-la. O repórter pode ir atrás dos detalhes depois mas, antes, deve divulgar o material que acabou de receber. É muito freqüente, no entanto, que isto [a busca de detalhes, e mesmo a checagem] não aconteça. Para se apurar uma notícia é preciso um mínimo de tempo - e muitas vezes o volume de releases, balanços de empresas e documentos que chegam à mesa do repórter, e cuja divulgação tem de ser feita o mais rapidamente possível, não permite a apuração de mais detalhes sobre a notícia divulgada inicialmente.
Não é preciso dizer que esse processo facilita o controle das fontes sobre o noticiário e as possibilidades de utilizá-lo para lançar, com mais frequência e eficácia do que já ocorre nos veículos impressos, os chamados "balões de ensaio" - informações fábricadas especialmente para testar a reação do público diante da hipótese de ocorrência daquele fato, apresentado, entretanto, como verdadeiro ou já consumado.
Especialmente quando se considera o despreparo dos repórteres para uma tarefa que, pelo menos declaradamente, destina-se a atender empresários atarefados, que precisam tomar rapidamente decisões importantes para seus negócios, e portanto requer uma especialização difícil de encontrar entre jovens recém-saídos da universidade, ou mesmo ainda estudantes - mão-de-obra preferida por essas empresas de internet, pois supostamente não apresenta os "vícios" de "escrever muito" e "querer contextualizar a matéria" que caracterizariam os jornalistas de veículos impressos. A própria repórter revela seu espanto ao estrear no serviço on line:
Lembro-me do meu primeiro dia de trabalho, quando a editora me deu o telefone de um executivo de seguradora, que acabou se tornando minha primeira fonte na área econômica. Olhei para ela e questionei: "rnas o que eu pergunto para ele"? Imagine-se a reação dessa então foca recém-saída da incubadora ao obter como resposta: "Pergunte qual o grau de sinistralidade da carteira de ramos elementares dele".
Não é difícil perceber que, num caso desses, não há a menor possibilidade de questionamento: o que a fonte disser será publicado.
Outro aspecto fundamental da veiculação instantânea de notícias são os riscos crescentes de imprecisão ou falsidade:
Erros ( ... ) são mais passíveis de acontecer no veículo on line porque a pressão imediata sobre o repórter é maior do que no impresso: pensa-se duas vezes antes de dar um telefonema para checar uma informação ( ... ) porque sabe-se que a conseqüência desse cuidado será instantaneamente refletida na tela do assinante, em forma de um "vazio" de notícias.
Isso gera uma situação curiosa, considerando-se o "controle de qualidade" estabelecido pela quantidade de inserções no sistema, pois desmentidos e retificações representam um volume de novas notas. Estas, porém, obviamente não podem ser tomadas como "produtivas", pois são a evidência de um erro. Sem falar em outro tipo de transtorno, como o que ocorreu no Investnews com a veiculação indevida de informação sobre a morte do ex-presidente Figueiredo. Mariana conta que a nota havia sido redigida com antecedência, como costuma ocorrer em qualquer veículo jornalístico quando uma personalidade está com a saúde muito abalada. No caso, por descuido, a matéria "ficou cerca de uma hora no sistema, até que alguém se desse conta de que ela fora liberada para a tela do usuário".
Em jornal impresso esses descuidos também acontecem, e representam, para o leitor, uma rara oportunidade de saber algo sobre o processo de produção da notícia. No dia 2 de julho de 2000, um domingo, o Informe JB abria com uma nota "velha" sobre a possível soltura do ex-senador Luiz Estevão, que já havia obtido habeas corpus na véspera. No dia seguinte, o jornal se desculpou, publicando um esclarecimento que levou o título de "lapso":
A nota "uma violência", publicada ontem na coluna a propósito da prisão do ex-senador Luiz Estevão, e prevendo que ele obteria habeas corpus, deveria ter saído na edição de sábado. Por um lapso, a de domingo foi publicada no sábado, e vice-versa.
"Tudo igual ponto com"
A imagem de velocidade que o jornalismo on line carrega consigo sugere a possibilidade de oferta de informações novas a cada instante. A ilusão dessa promessa foi comprovada pela ombudsman da Folha de S. Paulo Renata lo Prete, ao comentar o noticiário sobre a contusão do jogador Ronaldinho em seu retorno ao futebol, em Roma.
No artigo, que recebeu o título "Tudo igual ponto com" e saiu no dia 16 de abril de 2000, Renata diz que quem procurou novidades sobre o caso na internet "encontrou menos conteúdo do que a propaganda do novo meio permitia esperar":
A cena dramática no estádio em Roma, características e possíveis conseqüências da contusão, retrospectiva da carreira: em qualquer um desses aspectos, a cobertura on line pouco acrescentou ao que se viu na TV e, na manhã seguinte, nos jornais. Pelo contrário. No saldo, ficou aquém. Também não antecipou desdobramento relevante, qualidade presumida do tempo real. Houve as enquetes de sempre, mas estas costumam servir mais para entreter do que para informar.
Renata afirma que os sites veiculavam textos praticamente idênticos, oriundos de basicamente dois tipos de fontes: "as agências internacionais de notícias, ao lado da única do país especializada em esporte, e a rapinagem pura e simples entre sites e das reportagens de rádio e TV". A crítica, esclarece a articulista, não pretendia desmerecer a internet em benefício da chamada mídia tradicional, mas apontar a má qualidade do serviço oferecido, em comparação com as propostas e possibilidades do novo meio.
No mesmo artigo, Renata apresenta os resultados de pesquisa sobre a cobertura on line da eleição presidencial americana de 2000, feita pelo Committee of Concerned Journalists, organização que tem por objetivo discutir a qualidade da imprensa nos EUA. A ombudsman não diz o que a entidade entende por qualidade, mas esta informação não é relevante para o que nos importa aqui: as fontes utilizadas pelos serviços on line. Foram examinados 12 dos sites mais populares do país (portais como AOL, Microsoft e Yahoo!, veículos originalmente eletrô-nicos como a revista Salon e versões on line de jornais como The New York Times e The Washington Post), num total de 72 páginas e 286 reportagens.
Entre outras coisas, a pesquisa constatou que 25% das páginas analisadas não traziam material próprio, limitando-se a reproduzir des-pachos de agências e conteúdo de outros meios, e também 25% não ofereciam nenhum elemento interativo - resultado mais supreendente ainda porque a totalidade desse percentual era de sites exclusivos do novo meio, e não de serviços vinculados a jornais impressos.
A pesquisa não confirmou a idéia, bastante disseminada, de que a internet seria um instrumento propício à divulgação de boatos e informações pouco fundamentadas. Mas o mais interessante é a conclusão do relatório, que indica a ironia da promessa de "informação instantânea": "Um exame atento revela o segredo de boa parte da Internet: despachos da Reuters, um serviço noticioso de 149 anos de idade", o que, segundo Renata, "mostra a distância entre o prometido oceano de diversidade informativa e o atual estágio do jornalismo pontocom".
A propósito, justamente o objeto de análise da pesquisa do Comitee of Concerned Journalists daria a evidência mais flagrante dessa ironia. Como se sabe, o noticiário sobre o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2000 se transformou numa comédia de erros: as principais redes americanas de TV anunciaram apressadamente a vitória de George Bush, no que foram acompanhadas por boa parte dos jornais impressos, que, em sucessivas edições extras, ora afirmavam o nome do vencedor, ora duvidavam da informação. "Corrida pela notícia gera confusão nos EUA", destacou o Jornal do Brasil em 9 de novembro. Será? Afinal, todos se valiam dos dados informados pela Voter News Service, aos quais se conferia credibilidade automática. Se a fonte era a mesma para todas as redes, então não se tratava de uma corrida pela notícia, mas de uma corrida pela corrida, uma corrida pela velocidade.
0 episódio também revelou o conflito entre a luta pelo respeito ao conceito clássico de cidadania e o caráter lúdico que a política assume na sociedade do espetáculo - e que o "tempo real" ajuda a exacerbar. Uma foto da Reuters publicada em 10 de novembro é exemplar: em manifestação a favor da recontagem dos votos, uma mulher exibe cartaz em que se lê: "This is not a game! This is our nation's future! Let us be responsible!". De fato, uma decisão tão importante não deveria ser um jogo. No entanto, para a mídia, não era outra coisa: a enxurrada de matérias só via vantagens na informação instantânea, vibrando com o recorde de público que acompanhava o resultado pela internet (por exemplo, a cnn.com, que tem em média 30 milhões de visitas por dia, registrou 10 milhões de acessos por hora) e louvando a agilidade dos meios. Em 8 de novembro, o Los Angeles Times anunciava: "Eleitores americanos terão todas as notícias todo o tempo". 0 texto terminava assim:
Para os que encaram a eleição como uma contenda, a ABC News está oferecendo em seu site [abcnews.com] o "desafio da eleição americana", incorporando um de seus mais populares programas de esporte online. O "acerte o jogo do analista" permite aos espectadores fazer suas próprias previsões. Os integrantes da família e amigos por todo o país podem acessar o jogo para testar seu conhecimento político.
A rotina da velocidade
A disparidade entre o que se promete e o que se cumpre também frustra quem trabalha na área. Mariana Mainenti diz que, depois de um estafante dia de trabalho, costumava reler o que havia sido produzido por ela e pelos colegas do Investnews e ficava sistematicamente frustrada com o resultado, pensando no que julgava ser uma vantagem do jornalismo impresso:
Não raro o resultado era um material incompleto, fragmentado, baseado em um jornalismo declaratório e oficialesco, pela falta de tempo para se checar e aprofundar informações. Parecia-me, então, um tanto histérica e desprovida de sentido a correria das horas anteriores.
A "correria" é certamente maior no jornalismo on line, como sempre foi intensa no rádio e na televisão. Os slogans, aliás, são significativos: a respeitada Rádio JB prometia "o fato no ato"; a pequena Bandeirantes extrapolava, dizendo-se "a rádio que antecipa o fato". Mas a imagem do jornal impresso como o lugar da informação segura, confiável porque checada, contextualizada e resultante da reflexão de repórteres e editores, é no entanto um mito - coerente, porém, com a imagem do jornalista como um militante incansável a serviço da informação (da verdade), capaz de, a qualquer momento, chegar à redação aos brados de "parem as máquinas!", grito-síntese da idéia de subordinação da rotina industrial à força da notícia, tomada como valor supremo e única justificativa para a existência da imprensa.
0 mito não surgiu à toa.
Era a terceira noite de Caco Barcellos no Jornal da Tarde como redator. No intervalo, ele saiu para tomar um café quando viu uma multidão aglomerada na frente de um hotel. Não resistiu e foi ver o que era. Um homicídio tinha acabado de acontecer. De frente para a notícia, Barcellos se esqueceu da redação, para onde voltou à 1h30, e ouviu a reclamação de todos: "você está louco, seu irresponsável!" A edição do jornal estava quase fechada. Imediatamente, Barcellos sentou-se em frente à máquina e bateu uma matéria de página inteira sobre o homicídio. Daquele dia em diante, ele ficou um mês no JT atrás de notícias232.
Relatos emocionados de outros grandes repórteres, como Ricardo Kotscho e Clóvis Rossi233, também valorizam a insubordinação do jornalista - e do jornalismo - a rotinas industriais, num tempo em que os colegas gostavam de debochar uns dos outros chamando-se mutuamente de "velho atrasador de jornal". Ainda no início dos anos 80, não era raro assistir a cenas como as que frequentemente ocorriam na sucursal Rio do Estadão, num velho prédio da rua da Quitanda, no Centro: tarde da noite, o repórter Domingos Meirelles, um dos perfeccionistas do texto, ainda retocando detalhes em sua reportagem, para desespero das duas últimas pessoas ali - o chefe da sucursal e o operador de telex, que no andar de cima aguardava o texto para enviá-lo a São Paulo.
As novas tecnologias alteraram as rotinas de trabalho na redação. A reação negativa era previsível e compreensível: à parte as resistências ao computador, logo simplificadas pela associação a uma postura retrógrada de "rejeição ao novo", os jornalistas temiam pelo seu emprego. Com razão: a máquina permitiria o progressivo "enxugamento" do quadro de pessoal, a começar pelo setor de revisão, e quem ficou não teve a correspondente compensação salarial pelo acúmulo de tarefas234. O então subeditor de arte do Jornal do Brasil, Luis Carlos Moreira da Rocha, definiu com ironia o que chamou de "terceirização": "Aqui o significado é outro: um trabalha por três”235.
Com a incorporação dos serviços on line pelos grandes jornais, a sobrecarga é ainda maior. Assim, a vantagem que o repórter de jornal impresso poderia ter em relação ao que trabalha em meios eletrônicos desaparece: se antes havia condições de retornar à redação para redigir a matéria até o horário de fechamento, hoje é preciso fornecer flashes para o serviço "em tempo real" do jornal e, quando for o caso, também para boletins radiofônicos.
Eric Klinenberg deu conta do alcance desse processo ao estudar a Tribune Company, conglomerado midiático de ponta que opera com as tecnologias de informação mais avançadas e que, além do Chicago Tribune, publica três jornais regionais, possui uma rede de televisão, quatro estações de rádio, uma editora, investe em jornais on line, guias, patrocínio de eventos esportivos, etc 236 . Segundo o pesquisador, na sede da Tribune "a equipe local produz oito versões e três edições do jornal, sete telejornais e um número incalculável de produtos diversos para a internet". Assim, "a polivalência midiática autoriza um modo de produção no qual cada mídia procura utilizar os produtos das outras para melhorar sua oferta", e melhorar também a produtividade: com a contração do mercado de jornais e a intensificação da concorrência na televisão e na internet, a Tribune redefiniu o papel dos repórteres a fim de que eles pudessem trabalhar em várias mídias ao mesmo tempo.
Opera-se aí uma alteração significativa: Jornalismo passa a se chamar "conteúdo", palavra que define agora o que os repórteres devem produzir para se adaptar a todos os veículos da empresa. Klinenberg anota a influência dessa mudança para os rumos da atividade jornalística:
O antigo diretor de redação do Chicago Tribune lamentou recentemente: "O jornalismo sempre teve por função educar as pessoas. Hoje, os donos de jornal consideram, ao contrário, que esta é uma empresa como qualquer outra, deve antes de mais nada gerar lucro". O atual responsável pela direção do jornal não diz outra coisa: "Eu não sou o redator-chefe de um jornal; sou o gerente de uma empresa de conteúdo”237.
Outras mudanças dizem respeito à qualidade do material produzido:
Os jornalistas trabalham mais; dispõem de menos tempo para realizar suas entrevistas e para escrever; produzem informações mais superficiais. Quando, nos anos 7o e 8o, sociólogos americanos estudaram as condições de trabalho dos jornalistas, mostraram que a pressão do tempo pesava sobre a produção da informação e, conseqüentemente, diminuíam a qualidade, particularmente na televisão. Essas observações datam de uma época em que os jornalistas trabalhavam com um objeto determinado e para uma única mídia238.
Altera-se, assim, o próprio sentido de qualidade no jornalismo. Bem antes dessa interação multimídia, ainda quando as novas tecnologias estavam sendo consolidadas na imprensa brasileira, Sérgio Augusto apontou a irracionalidade desse processo em relação ao que seriam os objetivos clássicos do jornalismo.
Ao saber que a Folha havia comprado novos equipamentos que aumentariam a capacidade e a velocidade de impressão do jornal, um repórter perguntou se a redação ganharia mais tempo para fechar a edição. A resposta foi não. Moral da história: o último benefício que a moderna tecnologia trouxe à redação foi o computador. Cada vez mais o jornal é um produto que, antes de ser bom, precisa ser rápido para chegar mais cedo que os concorrentes às mãos do leitor239.
O acordo entre os grupos Folha e Estado, noticiado em setembro de 2001, para constituição de uma empresa encarregada da distribuição conjunta dos jornais produzidos por ambos, não invalida esse argumento, pois representa um reordenamento no nível de concorrência. Como notou o atual ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg, em sua coluna de 30 de setembro, “essa associação até há pouco impensável visa a posicionar melhor os dois grupos em termos concorrenciais mais amplos, haja vista a entrada agressiva das Organizações Globo no mercado de jornais paulista (mas não apenas neste), em especial com a compra do Diário Popular e sua transformação em Diário de S. Paulo". Assim, a concorrência entre os dois maiores rivais no mercado jornalístico paulista deixaria de se pautar por esse tipo de corrida contra o tempo, o que seria uma vantagem, pois "a conseqüência mais plausível, no que diz respeito aos leitores e aos jornalistas, é que a qualidade editorial ganhará maior peso na escolha". Ajzenberg demonstra preocupação, porém, com a preservação da independência editorial de cada publicação, dadas as afinidades que passam a existir no campo dos interesses econômicos, embora lembre que associações como essa "já ocorreram em outros países, em especial nos EUA, indo além, inclusive, da distribuição, sem quebrar a autonomia editorial de cada órgão".
A corrida contra o tempo, entretanto, continua mesmo nesse caso: velhos rivais se unem contra um novo concorrente na disputa por quem chega antes. Assim, a importância maior continua recaindo sobretudo no cumprimento de prazos. A versão de 1987 do Manual da Folha era bem explícita na indicação do desejo (mas não da fórmula mágica) de se unir rapidez e qualidade, como comprova o verbete rapidez:
É essencial combinar qualidade com rapidez. O jornal deve parte de sua grande circulação a uma política agressiva de distribuição, que tem no horário antecipado de chegada às bancas um de seus princípios básicos. Assim, o jornal deve fechar mais cedo que os concorrentes, sem perder em quantidade ou qualidade das informações240.
Capítulo 3
A velocidade como fetiche
Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve.
Luiz Fernando Veríssimo
0 conceito de fetichismo da mercadoria é suficientemente conhecido: Marx o definiu como o processo através do qual os bens produzidos pelo homem, uma vez postos no mercado, parecem existir por si, como se ganhassem vida própria, escondendo a relação social que lhes deu origem211. Na base desse processo está a reificação operada pelo capital, e que se condensa na definição do valor de troca da mercadoria, no qual a relação entre o trabalho necessário para a produção de um bem e esse mesmo bem se torna qualidade objetiva do produto. Assim, uma relação social estabelecida entre seres humanos aparece como uma fantasmagórica relação entre coisas. Daí o fetiche, que leva a perceber como naturais, objetificadas, as relações sociais.
Definida como mercadoria, tanto por teóricos como Habermas quanto por grandes empresas jornalísticas como a Folha de S. Paulo, a notícia não fugiria à regra: esconde o processo pelo qual foi produzida e vende mais do que a informação ali apresentada. Vende também, e principalmente, a ideologia da velocidade.
Este capítulo reúne as duas pontas do lema-síntese do jornalismo ("a verdade em primeira mão"), até aqui analisado em cada uma de suas partes. A junção pretende provocar o choque dos dois termos desse postulado e comprovar a hipótese principal deste trabalho - a de que a velocidade é consumida como fetiche, pois "chegar na frente" torna-se mais importante do que "dizer a verdade": a estrutura industrial da empresa jornalística está montada para atender a essa lógica.
Assim, em primeiro lugar analisaremos o processo de fetichização operado no jornalismo, para demonstrar como esse conceito se aplica ao primado da velocidade no mundo contemporâneo, e como a imprensa é parte integrante e ativa desse processo. A seguir, veremos como o jornalismo em tempo real se justifica a partir das necessidades do capital financeiro mas estende a sua lógica ao trabalho jornalístico em geral, reiterando o fetiche. A análise abrangerá o modelo segundo o qual o público tem agora a possibilidade de montar seu próprio jornal, a partir das informações que ele mesmo seleciona. Vamos contextualizar esse modelo do "tempo real" verificando como ele "vende" a idéia de liberdade de escolha encobrindo a fabricação da opinião a partir da suposta valorização do público como consumidor, a quem o jornal apenas "serve", excluindo-se aí o papel político do jornalista como mediador, que dá ao público "aquilo que ele não sabe que precisa”212
Notícia e fetiche
A definição da notícia como mercadoria permite a aplicação do conceito marxista de fetiche em dois sentidos principais. Primeiro, no aspecto mais visível, relacionado à idéia de que "os fatos falam por si", tais como aparecem no jornal, ocultando o processo de produção de sentido. Depois, na relação que a imprensa estabelece com o público, conferindo à notícia aquilo que Marcondes Filho chamou de aparência de valor de uso:
0 que caracteriza o jornalismo não é somente vender fatos e acontecimentos (que seriam puramente o valor de uso da informação), mas, ao transformá-los em mercadoria, explorar e vender sua aparência, o seu impacto, o caráter explosivo associado ao fato. Isso constrói a sua "aparência de valor de uso”213.
Marcondes Filho parte, assim, dos conceitos de valor de uso e valor de troca, clássicos no marxismo, observando que, com razão, Marx privilegiou em sua teoria o valor de troca, em torno do qual se manifestavam as determinações econômicas fundamentais, representativas do modo de organização da sociedade burguesa. Com isso, porém, foi relegada a segundo plano a análise da importância e do sentido do valor de uso das criações e produções humanas transformadas em mercadoria. Marcondes Filho recorre a um famoso estudo de Baudrillard para mostrar a lacuna que se cria em relação ao conceito de valor de uso, tratado como se a relação entre a necessidade própria do homem e a função própria do objeto fosse concreta, objetiva, natural, o que, afinal, contribuiria para a mitificação em torno do "verdadeiro" valor de uso de um produto214. A seguir, argumenta que, "da perspectiva do valor de uso, contudo, existe também toda uma mística na utilização da mercadoria, e é exatamente disso que se aproveita toda a indústria moderna de publicidade". Pois, como se sabe, jamais se consome o produto apenas, mas todos os valores extras que lhe são atribuídos: status, bom gosto, poder, beleza, juventude, etc. É no mesmo sentido que também se consome o jornal:
A nova apresentação periódica da aparência do valor de uso, a agilidade formal, o colorido, a diversidade ("com paginação moderna", mais fatos, papel espelhado, novas cores, novos tipos gráficos, suplementos coloridos, "comunicados de todo o mundo" e "informes exclusivos", mais páginas, "o mais novo", "o mais sensacional", etc.) servem somente ao objetivo de realizar o valor de troca em forma de dinheiro sem melhorar o valor de uso para o leitor215.
Embora reconheça contradições no processo de produção de notícias - próprias, aliás, do processo de produção de bens simbólicos -, de modo que "o jornal, a revista podem deixar passar os conflitos internos de sua produção" (grifo do autor), Marcondes Filho não parece dar suficiente atenção a esse aspecto. Ao contrário, preocupa-se com o caráter fragmentário e desconexo da apresentação cotidiana de notícias, que teria a função ideológica de domesticar conflitos e alienar consciências, a pretexto de informar. No limite, o valor de uso
do jornal, como meio de informação numa perspectiva de transformação social, seria igual a zero.
Certamente a questão não é simples assim: não se trata de opor esclarecimento (informação) a alienação, mesmo porque é impossível desconsiderar o campo de ambiguidades no qual o discurso se realiza. Além do mais, essa análise parte do pressuposto do público como "massa", manipulada pela indústria cultural, no sentido empregado pela Escola de Frankfurt, e portanto não inclui o público como parte integrante do processo de produção de sentido. Tampouco é de espantar que, ao associar imprensa e capitalismo, Marcondes Filho vincule (e restrinja) a própria prática do jornalismo às rotinas da grande empresa, de modo que o jornalismo não faria sentido numa sociedade não-capitalista.
Adelmo Genro Filho realizou uma boa crítica desses pressupostos recorrendo à perspectiva dialética que está no cerne da teoria crítica marxista, segundo a qual "o velho traz em si o germe do novo" e, portanto, as necessidades criadas pelo sistema capitalista provocam contradições que permitem formular hipóteses de transformação. No caso do jornalismo, Genro Filho aponta o papel da imprensa diária na satisfação de necessidades reais de informação e alerta para o risco (e o mecanicismo) das teorias conspiratórias que em tudo vêem a manipulação ideológica da classe dominante.
É claro que todas essas reflexões se dão num contexto datado, no qual se vislumbrava, embora a duras penas, a perspectiva da via socialista como superação do capitalismo. A queda do muro de Berlim, o fim da URSS, a guerra nos Bálcãs e tantos outros acontecimentos da virada dos anos 80 para os 90 ajudaram a sedimentar o “pensamento único" neoliberal de tal forma que esse tipo de elaboração teórica parece anacrônico e sem sentido. Certamente não é, porque toca em questões centrais do modo de produção e da fábricação de bens simbólicos postos no mercado, embora deva-se ressalvar que as alternativas propostas precisam ser reconsideradas em função das transformações pelas quais o mundo passou na última década.
É por isso que faz sentido retomar a crítica marxista e, com ela, o conceito de fetiche. No percurso trilhado até aqui, salientamos que os questionamentos ao "beco sem saída" para o qual aponta a análise de Marcondes Filho não devem desmerecer a precisão de seus argumentos sobre o processo de fetichização na informação jornalística.
A propósito, Genro Filho objeta que, "quando se pretende afirmar que o jornalismo, através da 'fragmentação noticiosa', produz necessariamente informações reificadas e que isso corresponde ao fetichismo geral da mercadoria, deve-se antes perguntar se realmente a fragmentação formal corresponde a um conteúdo reificado das notícias”216.
Pois, diz ele, a idéia de fragmentação e reifícação diz respeito ao conteúdo e não apenas à forma. Inexplicavelmente, o autor parece esquecer por um momento a concepção dialética na qual baseia toda a sua formulação teórica, pois forma e conteúdo não existem separadamente. Além disso, parece conferir uma excessiva ênfase nas potencialidades das novas técnicas do jornalismo e na força esclarecedora dos fatos que são dados à luz.
A idéia de fluxo, de um movimento no qual os atores aparecem diretamente em ação, muitas vezes instantaneamente, as infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas que saturam o meio social, tudo isso oferece enormes possibilidades para a negação da reificação ao invés de reforçá-la inexoravelmente217.
Certamente as "infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas" permitem pensar em igualmente infinitas interpretações dos fatos noticiados, mas valorizar por si a irrupção dos atores sociais na cena jornalística é esquecer todo o processo de construção da notícia; particularmente, valorizar a instantaneidade colabora para reforçar um outro fetiche, exatamente o que criticamos aqui: o fetiche da velocidade.
A velocidade auto-valorizada
Como disse Mattelart, a comunicação serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. E é fundamentalmente a guerra o tema de estudo de Paul Virilio: a guerra e sua lógica, suas relações com a política e a velocidade. 0 tom de seus textos é claramente apocalíptico, o que justifica críticas como a de Antonio Negri, condenando, embora sem citar nomes, o que chama de "concepção terrorista da mídia":
Nunca, como agora, a relação mídia-espectador foi tão satanizada, e isso só faz piorar. Não só isso, pretendeu-se dar à mensagem da mídia a imagem de uma rajada de metralhadora que se abate sobre o espectador - alvo miserável de um poder onipresente - e o aniquila. Esse moralismo obtuso e deprimente ganhou ares de ritual, mais particularmente para uma esquerda já agora incapaz de análises e propostas e que continua a se refugiar em lamentações inúteis. Mostram-nos uma vida cotidiana dominada pelo monstro da mídia como um cenário povoado de fantasmas, de zumbis prisioneiros de um destino de passividade, frustrações e impotências218.
A consequência seria o imobilismo diante de uma situação sem saída, "uma visão reificada e intransitiva da vida política que se traduz por: não se pode fazer nada! Impossível escapar a essa escravidão!" , confirmando-se assim a sacralidade do poder "nessa novíssima modernidade”. 219
.
A justeza da crítica não deve, porém, retirar a importância de aspectos essenciais dos estudos em questão, mesmo porque é a partir deles que será possível contrastar o triunfalismo dos postulados do "pensamento único". Assim, é fundamental ressaltar a abordagem que Virilio faz sobre o tempo real, encarado como um componente essencial do complexo militar-informacional contemporâneo que impõe à sociedade uma noção de informação como algo puramente estatístico. 0 autor apresenta a questão a partir de considerações sobre o campo da cibernética e o conceito de informação daí decorrente:
Durante a Segunda Guerra Mundial, os engenheiros da Bell Corporation descobrem uma grandeza física observável cuja utilização assegura uma melhor transmissão. Esta é batizada de informação. Logo, Norbert Wiener, o pai da cibernética, a definiu pelo que ela não é: "A informação não é nem a massa, nem a energia, a informação é a informação"220.
0 problema é a conclusão que Virilio extrai daí: segundo ele, uma vez que o advento limitado da revolução dos transportes dá lugar ao advento generalizado da revolução das transmissões instantâneas, a teoria da informação (a informática) suplantaria a física. Assim,
a fusão está feita e a confusão é total. A informação é o único "relevo" da realidade, seu único "volume". Na era da numerização da imagem e do som, deve-se até mesmo dizer sua "alta definição". Com a energia em potência e a energia no ato, dispomos agora de uma terceira forma energética: a energia em informação. Em seguida às três fases do deslocamento - a partida, a viagem, a chegada - e depois do declínio da "viagem", é iminente a perda da "partida". A partir daí tudo chega sem que seja necessário partir, mas o que “chega" não é mais a etapa ou o objetivo da viagem, é somente informação. ( ... ) 0 reino da chegada generalizada se confunde então com a generalização da informação em tempo real, tudo se precipita sobre o homem, um homem-alvo atacado de todos os lados e cuja salvação só pode estar na ilusão, a fuga diante das realidades do momento, perda do livre arbítrio cuja ocorrência Pascal evocava quando escreveu: "Nossos sentidos não percebem nada de extremo. Barulho demais nos ensurdece. Luz demais nos ofusca. As quantidades extremas nos são inimigas. Não sentimos mais, sofremos”221.
Estaríamos então realmente no beco sem saída a que se referiu Negri. Mas pode-se ver essa abordagem por outro lado e perceber aí a conformação do fetiche, ponto de partida para um questionamento mais profundo do atual estado de coisas: a informação não quer dizer nada, existe por si. Virilio praticamente explicita essa idéia páginas adiante, associando-a exatamente à atividade jornalística:
0 ciberespaço, ou, mais exatamente, o "espaço-tempo cibernético'', surgirá dessa constatação, cara aos homens de imprensa: a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor, a velocidade é a própria informação!222
Não por outro motivo o autor criou o neologismo "dromologia" (variante do grego dromos, relativo à idéia de corrida, curso, marcha) para apontar a lógica das sociedades pós-modernas. Laymert Garcia dos Santos diz que essa lógica "toma como referência absoluta, como equivalente geral, não mais a riqueza, mas a velocidade", que "vai se afirmando como idéia pura e sem conteúdo, como puro valor, que ameaça ultrapassar até mesmo o valor do capital”223. A metáfora permite reafirmar a idéia de fetiche - pois, afinal, esta é a própria lógica do capital nos tempos atuais, embora apareça descolada dele: é através da velocidade que o capital se realiza no "espaço de fluxos" do mercado financeiro global.
Generalizar as observações sobre informação e velocidade para a vida social só é possível num contexto em que se pretende identificar o cérebro humano com os componentes do computador, ou, como diz John von Neumann, "compreender o sistema nervoso do ponto de vista de um matemático".
Esse ponto de vista privilegia de forma inabitual os aspectos lógico e estatístico que serão destacados ao lado das técnicas matemáticas gerais. Além do mais, a lógica e as estatísticas serão consideradas principalmente (mas não exclusivamente) como instrumentos de base da teoria da informação e o essencial desta teoria será desenvolvido em torno da massa de experiências adquirida na construção, avaliação e codificação de autômatos lógicos e matemáticas complexas224.
Nesse contexto, tudo se transforma em informação, inclusive o corpo humano, que passa a ser visto como informação genética. A contrapartida ao acúmulo de próteses e à sedentarização progressiva nas grandes metrópoles é o apelo a uma também progressiva excitação, "não somente através das práticas esportivas abertamente desnaturalizadas, mas também no caso de atividades cotidianas em que a emancipação corporal devida às técnicas de teleação em tempo real liquida as necessidades tanto de vigor físico quanto de esforço muscular225. Lembrando Marinetti e seu projeto futurista que, já na primeira década do século XX, pretendia inaugurar "o reino do homem com as raizes cortadas", identificado com o motor, e recorrendo a conceitos da biologia segundo os quais "a excitabilidade é a propriedade fundamental dos tecidos vivos", Virílio faz um paralelo com a vida social e afirma:
Se ser é estar excitado, ser vivo é ser velocidade, uma velocidade metabólica que a tecnologia se dedica a aumentar e aperfeiçoar, como soube fazer para as espécies animais226.
Ao tratar da informação jornalística no contexto de aceleração do tempo, Virilio reitera a idéia de fetiche, pois, mais do que a notícia, consome-se velocidade.
A velha fórmula segundo a qual a informação é praticamente a única mercadoria que não vale mais nada ao fim de vinte e quatro horas merece portanto reflexão. No século XIX e no início do XX, em pleno auge da imprensa, trata-se ( ... ) menos de "produzir informação" do que de antecipá-la, de alcançá-la em movimento, para finalmente vendê-la antes que seja literalmente ultrapassada. Os assinantes passam a comprar menos notícias cotidianas do que adquirir instantaneidade, ubiquidade ou, em outras palavras, compram sua participação na contemporaneidade universal, no movimento da futura cidade planetária227.
Nesse processo de aceleração, "o imaginário substituía a realidade dos fatos, os jornalistas e publicitários se entregavam ao perigoso jogo dos prognósticos":
Em 1927, a imprensa francesa apostou desta forma no sucesso da travessia do Atlântico Norte de Leste a Oeste por Nungesser e Coli a bordo do L'Oiseau Blanc. Unânime, ela relatará com riqueza de detalhes a chegada triunfal a Nova Iorque, a alegria dos vencedores e a multidão em delírio, os discursos históricos proferidos na ocasião... No exato momento em que o anúncio da expedição fazia subir a venda dos jornais, os heróis do dia já haviam desaparecido de corpo e alma ao largo da costa americana à qual eles jamais chegaram. Entretanto, os redatores e jornalistas souberam se livrar desse equívoco acusando o governo e os ministérios envolvidos no caso de lhes terem induzido a erro ao divulgar informações falsas. O notável é que o público questionou os ministros da República, mas não usou do mesmo rigor com a imprensa228.
Precipitações como essa são ainda mais antigas, e algumas delas entraram para o anedotário do jornalismo: por exemplo, a reação de Mark Twain ao ler seu próprio obituário no jornal, em 2 de junho de 1897. Com a ironia que o caracterizava, ele reclamou à Associated Press: "A notícia sobre a minha morte foi muito exagerada".
Mas o "perigoso jogo dos prognósticos" a que se refere Virilio tem alcance mais amplo:
Há muito tempo os assinantes efetivamente fizeram o amálgama entre a ilusão da informação à distância, a vitualidade do romance-folhetim e a excitação dos jogos de azar organizados pelos grandes jornais, rifas, loterias, concursos... sem contar com os índices da bolsa e os grandes acontecimentos dromológicos, ralis, corridas e recordes eqüestres, pedestres, automobilísticos, aéreos, marítimos, ciclistas229.
A imposição do "tempo real"
Essas considerações indicam que as contradições entre, de um lado, uma estrutura que favorece a precipitação e a aposta em "prognósticos" como valor de atualidade e, de outro, o respeito a regras que exigem um distanciamento (e, portanto, alguma desaceleração) para a apuração rigorosa da notícia, é tão antiga quanto a própria constituição da imprensa como atividade industrial. Agora, na era do "tempo real", essas contradições tendem a se agravar, e a se "resolver" pela eliminação de um dos termos do problema - a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas -, pois "qualquer explicação serve" para sustentar a notícia transmitida instantaneamente.
O tempo do mercado financeiro dita a regra que pode ser sintetizada na expressão rush or perish - a rapidez é a condição da sobrevivência, sem que, entretanto, se saiba em que sentido é preciso ser rápido. O abalo provocado pelo jogo especulativo de um operador do banco Barings, em 95, e a chamada "crise asiática" de 97, são dois exemplos recentes das consequências a que pode chegar um sistema em que num segundo fortunas são feitas ou perdidas.
A "nova utopia tecnológica", no dizer de Ignacio Ramonet, é a internet e sua possibilidade de interligar o mundo com informações em tempo real e fluxo contínuo, exatamente como opera o mercado financeiro. Como a maioria dos grandes jornais, no mundo todo, já pertence a megagrupos de comunicação, não há como analisar a prática do jornalismo fora desse contexto230.
No tempo do jornalismo on line, o ritmo de trabalho se acelera.
Rio de Janeiro, inverno de 1997.
Os nove metros quadrados da saleta do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) eram suficientes para abrigar uma mesa retangular e oito cadeiras de madeira compensada - mobiliário espartano, mais corretamente classificado como "velho" do que “antigo". Nas paredes brancas, nenhum quadro ou prateleira, apenas trilhas de tinta descascada, que convergiam para uma esquadria de alumínio, por onde uma réstia de luz atenuava a sóbria padronização do ambiente, comum a boa parcela das repartições públicas.
Foi neste cenário pouco atraente que presenciei pela primeira vez o espetáculo do tempo real. Em volta da mesa, meia dúzia de jornalistas acompanhava, atentamente, o que um técnico já experiente em conceder entrevistas coletivas dizia a respeito da última safra agrícola e do indicador mais recente, também saído do forno, elaborado pelo IBGE sobre o desempenho da indústria e do comércio. Sem demorar-se, revelou logo aquilo que sabia aguardado sedentamente pelos repórteres de economia que o ouviam, caneta e bloco em posição de largada: os números.
Informados os devidos percentuais e feitas as primeiras análises e projeções (o que levou não mais do que dez minutos), repentinamente, metade dos jornalistas presentes se levantou. Num maneio ligeiro e sincronizado, cada repórter sacou seu telefone celular e começou a dedilhar freneticamente as teclas do aparelhinho, nunca tão indispensável quanto naquele momento.
A repórter da Agência Globo foi a primeira a conseguir falar com a redação, para desespero dos jornalistas de outras agências de notícias em tempo real, que, naquele momento decisivo da disputa pelo troféu da agilidade, deparavam-se com problemas aparentemente banais. Ali, ganhavam proporções gigantescas um telefone ocupado e uma bateria fraca - detalhes que poderiam fazer deles perdedores, profissionais fracassados em sua missão de levar para o assinante dos respectivos serviços eletrônicos a informação "em primeira mão", mesmo que por uma diferença de segundos sobre a agência concorrente. No auge do desespero, buscavam alguma alternativa, como pedir socorro a uma calma e serena assessora de imprensa que, alheia às angústias gerais, acompanhava-os lentamente ao telefone fixo mais próximo. E, com sorte, o aparelho não estaria sendo usado pela secretária, ocupada pela tarefa não menos inglória de, mesmo à distância, arbitrar a disputa dos filhos pelo controle-remoto da TV de casa. Vencida esta etapa, cumpria-se a missão dos repórteres, que poderiam então se deslocar para uma nova entrevista coletiva e, no caminho, passar do carro mais um flash com informaçoes remanescentes. Para mim, àquela altura, começava a ficar claro que a produção de um repórter de agência é avaliada conforme o número de flashes ou "notas" que ele é capaz de passar para a redação, o que se usa chamar, no jargão do meio eletrônico, de capacidade de "alimentar o sistema”231.
0 depoimento não considera que, de alguma forma, os jornalistas da "era industrial" sempre trabalharam assim: perdem-se a conta das cenas em que o cinema reproduziu o ambiente clássico das salas de imprensa dos anos 20 e 30, os repórteres reunidos jogando cartas e fumando displicentemente até que uma informação nova os sacudia e todos corriam aos telefones para passá-la aos jornais, cada qual com uma versão mais sensacional que o concorrente. A informação não chegava "em tempo real" para o leitor, mas garantia as edições extras da época.
Evidentemente, há diferenças de ritmo, conforme o tipo de veículo para o qual se trabalha. Mas o importante será perceber como a lógica do "tempo real" afeta a prática do jornalismo como um todo, radicalizando a “corrida contra o tempo" que sempre marcou a profissão. Mais ainda: que as exigências do mercado financeiro, e de quem nele atua, passam a ser o relógio do noticiário em geral. A chave para a defesa de nossa hipótese principal - a velocidade como fetiche - encontra-se nas palavras finais do trecho reproduzido acima: trabalhar cada vez mais rápido para "alimentar o sistema". Pois, bem antes do início da era do "tempo real", um experiente editor carioca definia cinicamente: "jornalismo é pintar de preto papel branco". O que é mais ou menos a mesma coisa que reiterar uma das máximas incluídas no folclore da profissão: notícia é o que se publica entre anúncios.
A informação instantânea
Comecemos pelo fim: a "engrenagem do tempo real" segundo a qual funcionam os serviços noticiosos on line, vista por Mariana Mainenti Gomes, então estagiando como repórter do Investnews, da Gazeta Mercantil. A descrição do ambiente de trabalho dá a base sobre a qual se desenvolvem as rotinas de produção:
Quem conhece uma redação de jornal, revista ou TV e passa por uma agência de notícias nos horários de maior movimento - entre dez da manhã e cinco da tarde - é capaz de apostar que ali não se encontram jornalistas mas, sim, operadores de teleimarketing ou de algum moderno call center (unidade telefônica de atendimento aos clientes de determinada empresa). Com fones no ouvido - utilizados para receber as notas passadas pelos colegas que estão em coletivas na rua - e com aparatos de proteção nas mãos, para proteger-se da tendinite (inflamação dos tendões muito comum àqueles que fazem esforço repetitivo, como o uso intensivo do mouse) esses jornalistas encarnam o estereótipo do operário-padrão da era pós-industrial. O clima geral é de extrema concentração. São raras as conversas "paralelas", mesmo envolvendo discussões a respeito de matérias. As reuniões de pauta, quase inexistentes. Para todos que ali estão, qualquer uma dessas práticas pode levá-los a adiar um ponto final na notícia, o que não combina com a essência atribuída ao veículo: a rapidez. ( ... ) Esses jornalistas têm de estar empenhados em tornar 100% de seu expediente na agência produtivos, pois sobre eles recai de modo subliminar mas recorrente uma espécie de índice de produtividade. Do mesmo modo que um operador de telemarketing é avaliado pelo número de vendas realizadas e o atendente de call center pelo de atendimentos, a produção de um jornalista on line é medida pelo número de notas que ele é capaz de lançar no sistema - algo fácil de ser checado pelos chefes ou dirigentes da empresa: basta digitar o nome do avaliado no espaço reservado para pesquisa de texto por palavra-chave e, em seguida, lá estarão listadas todas as notícias produzidas por ele.
De tais rotinas resulta um material noticioso bem específico: para cumprir a meta de cinco notas por saída - e assim compensar com volume de notícias a perda de tempo no trânsito - o repórter on line aprende a desmembrar uma mesma informação.
[Isso] torna mais ágil também todo o processo de produção da agência, pela filosofia da divisão do trabalho: o repórter envia a primeira nota por celular e algum outro repórter que está na redação, simultaneamente, a digita na tela "interna". Enquanto o repórter está passando a segunda nota, a primeira já está sendo lida e liberada pelo editor para a tela do usuário do serviço. Quando o editor terminar de ler a primeira nota, provavelmente, a segunda já terá sido passada pelo repórter, estando pendente no sistema para a sua liberação. E assim sucessivamente.
É um ritmo comparável ao das antigas agências que, pelo telex, enviavam notas "do mundo todo" aos jornais, com a considerável diferença de que, então, o jornal reuniria aquele material para depois processar a informação, e agora a relação é diretamente com o público.
Esse automatismo traz conseqüências importantes para a qualidade da informação veiculada: A orientação para o repórter é nunca ficar com informação "parada": ao receber uma notícia, deve automaticamente repassá-la. O repórter pode ir atrás dos detalhes depois mas, antes, deve divulgar o material que acabou de receber. É muito freqüente, no entanto, que isto [a busca de detalhes, e mesmo a checagem] não aconteça. Para se apurar uma notícia é preciso um mínimo de tempo - e muitas vezes o volume de releases, balanços de empresas e documentos que chegam à mesa do repórter, e cuja divulgação tem de ser feita o mais rapidamente possível, não permite a apuração de mais detalhes sobre a notícia divulgada inicialmente.
Não é preciso dizer que esse processo facilita o controle das fontes sobre o noticiário e as possibilidades de utilizá-lo para lançar, com mais frequência e eficácia do que já ocorre nos veículos impressos, os chamados "balões de ensaio" - informações fábricadas especialmente para testar a reação do público diante da hipótese de ocorrência daquele fato, apresentado, entretanto, como verdadeiro ou já consumado.
Especialmente quando se considera o despreparo dos repórteres para uma tarefa que, pelo menos declaradamente, destina-se a atender empresários atarefados, que precisam tomar rapidamente decisões importantes para seus negócios, e portanto requer uma especialização difícil de encontrar entre jovens recém-saídos da universidade, ou mesmo ainda estudantes - mão-de-obra preferida por essas empresas de internet, pois supostamente não apresenta os "vícios" de "escrever muito" e "querer contextualizar a matéria" que caracterizariam os jornalistas de veículos impressos. A própria repórter revela seu espanto ao estrear no serviço on line:
Lembro-me do meu primeiro dia de trabalho, quando a editora me deu o telefone de um executivo de seguradora, que acabou se tornando minha primeira fonte na área econômica. Olhei para ela e questionei: "rnas o que eu pergunto para ele"? Imagine-se a reação dessa então foca recém-saída da incubadora ao obter como resposta: "Pergunte qual o grau de sinistralidade da carteira de ramos elementares dele".
Não é difícil perceber que, num caso desses, não há a menor possibilidade de questionamento: o que a fonte disser será publicado.
Outro aspecto fundamental da veiculação instantânea de notícias são os riscos crescentes de imprecisão ou falsidade:
Erros ( ... ) são mais passíveis de acontecer no veículo on line porque a pressão imediata sobre o repórter é maior do que no impresso: pensa-se duas vezes antes de dar um telefonema para checar uma informação ( ... ) porque sabe-se que a conseqüência desse cuidado será instantaneamente refletida na tela do assinante, em forma de um "vazio" de notícias.
Isso gera uma situação curiosa, considerando-se o "controle de qualidade" estabelecido pela quantidade de inserções no sistema, pois desmentidos e retificações representam um volume de novas notas. Estas, porém, obviamente não podem ser tomadas como "produtivas", pois são a evidência de um erro. Sem falar em outro tipo de transtorno, como o que ocorreu no Investnews com a veiculação indevida de informação sobre a morte do ex-presidente Figueiredo. Mariana conta que a nota havia sido redigida com antecedência, como costuma ocorrer em qualquer veículo jornalístico quando uma personalidade está com a saúde muito abalada. No caso, por descuido, a matéria "ficou cerca de uma hora no sistema, até que alguém se desse conta de que ela fora liberada para a tela do usuário".
Em jornal impresso esses descuidos também acontecem, e representam, para o leitor, uma rara oportunidade de saber algo sobre o processo de produção da notícia. No dia 2 de julho de 2000, um domingo, o Informe JB abria com uma nota "velha" sobre a possível soltura do ex-senador Luiz Estevão, que já havia obtido habeas corpus na véspera. No dia seguinte, o jornal se desculpou, publicando um esclarecimento que levou o título de "lapso":
A nota "uma violência", publicada ontem na coluna a propósito da prisão do ex-senador Luiz Estevão, e prevendo que ele obteria habeas corpus, deveria ter saído na edição de sábado. Por um lapso, a de domingo foi publicada no sábado, e vice-versa.
"Tudo igual ponto com"
A imagem de velocidade que o jornalismo on line carrega consigo sugere a possibilidade de oferta de informações novas a cada instante. A ilusão dessa promessa foi comprovada pela ombudsman da Folha de S. Paulo Renata lo Prete, ao comentar o noticiário sobre a contusão do jogador Ronaldinho em seu retorno ao futebol, em Roma.
No artigo, que recebeu o título "Tudo igual ponto com" e saiu no dia 16 de abril de 2000, Renata diz que quem procurou novidades sobre o caso na internet "encontrou menos conteúdo do que a propaganda do novo meio permitia esperar":
A cena dramática no estádio em Roma, características e possíveis conseqüências da contusão, retrospectiva da carreira: em qualquer um desses aspectos, a cobertura on line pouco acrescentou ao que se viu na TV e, na manhã seguinte, nos jornais. Pelo contrário. No saldo, ficou aquém. Também não antecipou desdobramento relevante, qualidade presumida do tempo real. Houve as enquetes de sempre, mas estas costumam servir mais para entreter do que para informar.
Renata afirma que os sites veiculavam textos praticamente idênticos, oriundos de basicamente dois tipos de fontes: "as agências internacionais de notícias, ao lado da única do país especializada em esporte, e a rapinagem pura e simples entre sites e das reportagens de rádio e TV". A crítica, esclarece a articulista, não pretendia desmerecer a internet em benefício da chamada mídia tradicional, mas apontar a má qualidade do serviço oferecido, em comparação com as propostas e possibilidades do novo meio.
No mesmo artigo, Renata apresenta os resultados de pesquisa sobre a cobertura on line da eleição presidencial americana de 2000, feita pelo Committee of Concerned Journalists, organização que tem por objetivo discutir a qualidade da imprensa nos EUA. A ombudsman não diz o que a entidade entende por qualidade, mas esta informação não é relevante para o que nos importa aqui: as fontes utilizadas pelos serviços on line. Foram examinados 12 dos sites mais populares do país (portais como AOL, Microsoft e Yahoo!, veículos originalmente eletrô-nicos como a revista Salon e versões on line de jornais como The New York Times e The Washington Post), num total de 72 páginas e 286 reportagens.
Entre outras coisas, a pesquisa constatou que 25% das páginas analisadas não traziam material próprio, limitando-se a reproduzir des-pachos de agências e conteúdo de outros meios, e também 25% não ofereciam nenhum elemento interativo - resultado mais supreendente ainda porque a totalidade desse percentual era de sites exclusivos do novo meio, e não de serviços vinculados a jornais impressos.
A pesquisa não confirmou a idéia, bastante disseminada, de que a internet seria um instrumento propício à divulgação de boatos e informações pouco fundamentadas. Mas o mais interessante é a conclusão do relatório, que indica a ironia da promessa de "informação instantânea": "Um exame atento revela o segredo de boa parte da Internet: despachos da Reuters, um serviço noticioso de 149 anos de idade", o que, segundo Renata, "mostra a distância entre o prometido oceano de diversidade informativa e o atual estágio do jornalismo pontocom".
A propósito, justamente o objeto de análise da pesquisa do Comitee of Concerned Journalists daria a evidência mais flagrante dessa ironia. Como se sabe, o noticiário sobre o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2000 se transformou numa comédia de erros: as principais redes americanas de TV anunciaram apressadamente a vitória de George Bush, no que foram acompanhadas por boa parte dos jornais impressos, que, em sucessivas edições extras, ora afirmavam o nome do vencedor, ora duvidavam da informação. "Corrida pela notícia gera confusão nos EUA", destacou o Jornal do Brasil em 9 de novembro. Será? Afinal, todos se valiam dos dados informados pela Voter News Service, aos quais se conferia credibilidade automática. Se a fonte era a mesma para todas as redes, então não se tratava de uma corrida pela notícia, mas de uma corrida pela corrida, uma corrida pela velocidade.
0 episódio também revelou o conflito entre a luta pelo respeito ao conceito clássico de cidadania e o caráter lúdico que a política assume na sociedade do espetáculo - e que o "tempo real" ajuda a exacerbar. Uma foto da Reuters publicada em 10 de novembro é exemplar: em manifestação a favor da recontagem dos votos, uma mulher exibe cartaz em que se lê: "This is not a game! This is our nation's future! Let us be responsible!". De fato, uma decisão tão importante não deveria ser um jogo. No entanto, para a mídia, não era outra coisa: a enxurrada de matérias só via vantagens na informação instantânea, vibrando com o recorde de público que acompanhava o resultado pela internet (por exemplo, a cnn.com, que tem em média 30 milhões de visitas por dia, registrou 10 milhões de acessos por hora) e louvando a agilidade dos meios. Em 8 de novembro, o Los Angeles Times anunciava: "Eleitores americanos terão todas as notícias todo o tempo". 0 texto terminava assim:
Para os que encaram a eleição como uma contenda, a ABC News está oferecendo em seu site [abcnews.com] o "desafio da eleição americana", incorporando um de seus mais populares programas de esporte online. O "acerte o jogo do analista" permite aos espectadores fazer suas próprias previsões. Os integrantes da família e amigos por todo o país podem acessar o jogo para testar seu conhecimento político.
A rotina da velocidade
A disparidade entre o que se promete e o que se cumpre também frustra quem trabalha na área. Mariana Mainenti diz que, depois de um estafante dia de trabalho, costumava reler o que havia sido produzido por ela e pelos colegas do Investnews e ficava sistematicamente frustrada com o resultado, pensando no que julgava ser uma vantagem do jornalismo impresso:
Não raro o resultado era um material incompleto, fragmentado, baseado em um jornalismo declaratório e oficialesco, pela falta de tempo para se checar e aprofundar informações. Parecia-me, então, um tanto histérica e desprovida de sentido a correria das horas anteriores.
A "correria" é certamente maior no jornalismo on line, como sempre foi intensa no rádio e na televisão. Os slogans, aliás, são significativos: a respeitada Rádio JB prometia "o fato no ato"; a pequena Bandeirantes extrapolava, dizendo-se "a rádio que antecipa o fato". Mas a imagem do jornal impresso como o lugar da informação segura, confiável porque checada, contextualizada e resultante da reflexão de repórteres e editores, é no entanto um mito - coerente, porém, com a imagem do jornalista como um militante incansável a serviço da informação (da verdade), capaz de, a qualquer momento, chegar à redação aos brados de "parem as máquinas!", grito-síntese da idéia de subordinação da rotina industrial à força da notícia, tomada como valor supremo e única justificativa para a existência da imprensa.
0 mito não surgiu à toa.
Era a terceira noite de Caco Barcellos no Jornal da Tarde como redator. No intervalo, ele saiu para tomar um café quando viu uma multidão aglomerada na frente de um hotel. Não resistiu e foi ver o que era. Um homicídio tinha acabado de acontecer. De frente para a notícia, Barcellos se esqueceu da redação, para onde voltou à 1h30, e ouviu a reclamação de todos: "você está louco, seu irresponsável!" A edição do jornal estava quase fechada. Imediatamente, Barcellos sentou-se em frente à máquina e bateu uma matéria de página inteira sobre o homicídio. Daquele dia em diante, ele ficou um mês no JT atrás de notícias232.
Relatos emocionados de outros grandes repórteres, como Ricardo Kotscho e Clóvis Rossi233, também valorizam a insubordinação do jornalista - e do jornalismo - a rotinas industriais, num tempo em que os colegas gostavam de debochar uns dos outros chamando-se mutuamente de "velho atrasador de jornal". Ainda no início dos anos 80, não era raro assistir a cenas como as que frequentemente ocorriam na sucursal Rio do Estadão, num velho prédio da rua da Quitanda, no Centro: tarde da noite, o repórter Domingos Meirelles, um dos perfeccionistas do texto, ainda retocando detalhes em sua reportagem, para desespero das duas últimas pessoas ali - o chefe da sucursal e o operador de telex, que no andar de cima aguardava o texto para enviá-lo a São Paulo.
As novas tecnologias alteraram as rotinas de trabalho na redação. A reação negativa era previsível e compreensível: à parte as resistências ao computador, logo simplificadas pela associação a uma postura retrógrada de "rejeição ao novo", os jornalistas temiam pelo seu emprego. Com razão: a máquina permitiria o progressivo "enxugamento" do quadro de pessoal, a começar pelo setor de revisão, e quem ficou não teve a correspondente compensação salarial pelo acúmulo de tarefas234. O então subeditor de arte do Jornal do Brasil, Luis Carlos Moreira da Rocha, definiu com ironia o que chamou de "terceirização": "Aqui o significado é outro: um trabalha por três”235.
Com a incorporação dos serviços on line pelos grandes jornais, a sobrecarga é ainda maior. Assim, a vantagem que o repórter de jornal impresso poderia ter em relação ao que trabalha em meios eletrônicos desaparece: se antes havia condições de retornar à redação para redigir a matéria até o horário de fechamento, hoje é preciso fornecer flashes para o serviço "em tempo real" do jornal e, quando for o caso, também para boletins radiofônicos.
Eric Klinenberg deu conta do alcance desse processo ao estudar a Tribune Company, conglomerado midiático de ponta que opera com as tecnologias de informação mais avançadas e que, além do Chicago Tribune, publica três jornais regionais, possui uma rede de televisão, quatro estações de rádio, uma editora, investe em jornais on line, guias, patrocínio de eventos esportivos, etc 236 . Segundo o pesquisador, na sede da Tribune "a equipe local produz oito versões e três edições do jornal, sete telejornais e um número incalculável de produtos diversos para a internet". Assim, "a polivalência midiática autoriza um modo de produção no qual cada mídia procura utilizar os produtos das outras para melhorar sua oferta", e melhorar também a produtividade: com a contração do mercado de jornais e a intensificação da concorrência na televisão e na internet, a Tribune redefiniu o papel dos repórteres a fim de que eles pudessem trabalhar em várias mídias ao mesmo tempo.
Opera-se aí uma alteração significativa: Jornalismo passa a se chamar "conteúdo", palavra que define agora o que os repórteres devem produzir para se adaptar a todos os veículos da empresa. Klinenberg anota a influência dessa mudança para os rumos da atividade jornalística:
O antigo diretor de redação do Chicago Tribune lamentou recentemente: "O jornalismo sempre teve por função educar as pessoas. Hoje, os donos de jornal consideram, ao contrário, que esta é uma empresa como qualquer outra, deve antes de mais nada gerar lucro". O atual responsável pela direção do jornal não diz outra coisa: "Eu não sou o redator-chefe de um jornal; sou o gerente de uma empresa de conteúdo”237.
Outras mudanças dizem respeito à qualidade do material produzido:
Os jornalistas trabalham mais; dispõem de menos tempo para realizar suas entrevistas e para escrever; produzem informações mais superficiais. Quando, nos anos 7o e 8o, sociólogos americanos estudaram as condições de trabalho dos jornalistas, mostraram que a pressão do tempo pesava sobre a produção da informação e, conseqüentemente, diminuíam a qualidade, particularmente na televisão. Essas observações datam de uma época em que os jornalistas trabalhavam com um objeto determinado e para uma única mídia238.
Altera-se, assim, o próprio sentido de qualidade no jornalismo. Bem antes dessa interação multimídia, ainda quando as novas tecnologias estavam sendo consolidadas na imprensa brasileira, Sérgio Augusto apontou a irracionalidade desse processo em relação ao que seriam os objetivos clássicos do jornalismo.
Ao saber que a Folha havia comprado novos equipamentos que aumentariam a capacidade e a velocidade de impressão do jornal, um repórter perguntou se a redação ganharia mais tempo para fechar a edição. A resposta foi não. Moral da história: o último benefício que a moderna tecnologia trouxe à redação foi o computador. Cada vez mais o jornal é um produto que, antes de ser bom, precisa ser rápido para chegar mais cedo que os concorrentes às mãos do leitor239.
O acordo entre os grupos Folha e Estado, noticiado em setembro de 2001, para constituição de uma empresa encarregada da distribuição conjunta dos jornais produzidos por ambos, não invalida esse argumento, pois representa um reordenamento no nível de concorrência. Como notou o atual ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg, em sua coluna de 30 de setembro, “essa associação até há pouco impensável visa a posicionar melhor os dois grupos em termos concorrenciais mais amplos, haja vista a entrada agressiva das Organizações Globo no mercado de jornais paulista (mas não apenas neste), em especial com a compra do Diário Popular e sua transformação em Diário de S. Paulo". Assim, a concorrência entre os dois maiores rivais no mercado jornalístico paulista deixaria de se pautar por esse tipo de corrida contra o tempo, o que seria uma vantagem, pois "a conseqüência mais plausível, no que diz respeito aos leitores e aos jornalistas, é que a qualidade editorial ganhará maior peso na escolha". Ajzenberg demonstra preocupação, porém, com a preservação da independência editorial de cada publicação, dadas as afinidades que passam a existir no campo dos interesses econômicos, embora lembre que associações como essa "já ocorreram em outros países, em especial nos EUA, indo além, inclusive, da distribuição, sem quebrar a autonomia editorial de cada órgão".
A corrida contra o tempo, entretanto, continua mesmo nesse caso: velhos rivais se unem contra um novo concorrente na disputa por quem chega antes. Assim, a importância maior continua recaindo sobretudo no cumprimento de prazos. A versão de 1987 do Manual da Folha era bem explícita na indicação do desejo (mas não da fórmula mágica) de se unir rapidez e qualidade, como comprova o verbete rapidez:
É essencial combinar qualidade com rapidez. O jornal deve parte de sua grande circulação a uma política agressiva de distribuição, que tem no horário antecipado de chegada às bancas um de seus princípios básicos. Assim, o jornal deve fechar mais cedo que os concorrentes, sem perder em quantidade ou qualidade das informações240.